quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Onde Tudo Começa

Sempre quis conhecer as praias de Copacabana, andar pelo calçadão e tocar a areia branca que cerca aquela imensidão azul, que nos meus sonhos parecem turquesa. Mas sabia que seria impossível. Eu estava no norte, no topo da cidade, cercado por favelas, sujeira, pobreza, fome, injustiças, álcool, e sentia que era esse o meu mundo, por mais que eu negasse, tentasse fugir, eu pertencia àquele lugar. Já a minha esperança se encontrava no sul, aquela maresia que me transmitia tranqüilidade. Passando por lá, carros luxuosos, que mal via na televisão, roupas que custariam o preço da minha casa. Aquela gente que despreza, humilha e se sente superior. Mas realmente são. Eles são melhores do que nós.

E eu aqui, deitado numa cama, sem conseguir fechar os olhos. A minha irmã, Lúcia, ao meu lado, já dormindo. O meu meio-irmão, Pedro, chora de fome. O meu padrasto, dormindo em frente ao jornal, e a minha mãe passando roupas. O calor transmitido pelo ferro em suas mãos se torna insuportável. Então, ela se aproxima, eu finjo estar dormindo. Deixa uma nota verde para o lanche de mais tarde, e sai, com uma trouxa na cabeça, bambeando pelas escadas.

O alcoólatra da casa, Luiz, que infelizmente é o meu padrasto, acorda irritado. Quando está assim, eu já sei o que quer. Bebida. Pega a minha nota verde e sai. Sinto que nessa tarde passaremos fome de novo. Então ele chega, encharcado, com uma garrafa na mão. É impressionante como consegue vira-la na garganta, beber tudo em um único gole.

Insaciável, me coloca como engraxate e obriga a minha irmã a varrer a casa. Consigo algumas moedas e compro um pão, que será repartido em três. Para mim, a Lúcia e o Pedro. Por sorte, ainda resta algum troco. Guardo-o nos bolsos.

Sentindo o cheiro do dinheiro, o meu padrasto toma-me as moedas e novamente, bebe. Não suporto mais tudo isso, é difícil aceitar um absurdo com este, que se repete todos os dias, calado, imóvel. Tenho sangue correndo nas veias, que ferve ao ver aquele homem enorme, com barba por fazer, olhando-me como se fosse devorar-me. E eu, uma pressa fácil para suas agressões.

Deixo aquele barraco, deixo tudo para trás. Eu quero recomeçar, e do zero, no lugar onde sempre sonhei: A minha praia. É, por que agora ela pertencerá a mim também. Sigo descalço pelas ruas, meus pés queimam no asfalto, mas consigo chegar. O dia já está no fim, não tenho mais forças para manter-me firme. Caio, deito naquela areia branca dos meus sonhos, e adormeço.

Quando acordo, parece-me que já passam das 10 da manhã, por que o dia está ensolarado e um vendedor de picolé quase me atropela com seu carrinho. A praia começa a encher de pessoas. E então, lembro-me que hoje é sábado. Estou com a minha caixa de engraxate e começo a oferecer meus serviços aos doutores que por ali passam. Alguns aceitam, outros torcem o nariz e ignoram-me. Consigo algumas moedas e como alguma besteira.

Os meus dias foram assim, nessa mesma sincronia, numa espécie de rotina. Sentia-me só, achava-me num imenso vazio, lembrava do aconchego da minha família e pensava em voltar, mas em seguida vinham as péssimas memórias do Luiz, e desistia da ideia. Não demorou muito tempo até que encontrasse meninos como eu. E começamos a andar em grupos. Tinha conhecido a minha tribo, os meus semelhantes.

Mas o que eu não sabia é que, depois dos bicos que fazíamos, os meus colegas trocavam suas moedas por pacotes de pó, e não por um prato de feijão. Eles cheiravam aquilo, e suspiravam felizes. Eu não entendia. Ofereceram-me e aceitei. Parecia bom, por que não experimentar?

No início, tive estranhas sensações e calafrios subiam-me pelo corpo, senti náuseas, mas depois uma imensa sensação de euforia. Uma vontade rir, não sei por quê, e nem do que. Agora, as minhas moedas também começaram a ser trocadas pelo pó que mais tarde descobri que se chamava cocaína.

Só que, repentinamente, a minha “fórmula da felicidade” pareceu insuficiente. Era preciso mais. Então, começamos todos a cometer pequenos furtos, e ficamos conhecidos como “batedores de carteira”.  Experimentamos coisas novas, cigarros, bebidas, e a pior de todas as drogas: o crack.

Não me dava mais o trabalho de engraxar sapatos, assaltar bolsos volumosos, com carteiras, daquelas de couro, nobres, era menos trabalhoso e rendia mais. Fumávamos todos os dias. Uma única hora parado me trazia imenso desgosto, abstinência que me corroia as entranhas, matando-me aos poucos.

Então, o que eu consumia em um dia já não era suficiente. Carteiras não eram capazes de sustentar-me. Precisava de mais. Planejei um roubo, dos “grandes”, de um carro. Tremia só de pensar nas conseqüências. Estar preso era torturante, mas estar longe das drogas parecia-me ser o fim. Fui ao estacionamento, Tudo estava arquitetado. Levei o carro para longe, mas nunca imaginaria que poderia ser rastreado. E acabei sendo.

Não tinha condições psicológicas de permanecer numa prisão, e hoje, estou a mais de um ano em uma clínica de reabilitação. Já tentei várias fugas, voltei ao vício, e não acredito que sou capaz de abandoná-lo.

Agora, encontro-me deitado, na mesma clínica que entrei há um ano carregado com camisa de força. Daqui algumas horas, serei levado ao hospital, mas não tenho ideia do que será feito comigo. Escrevo essas palavras por que sinto que serão as últimas da minha vida, para alertar aos jovens que jamais consumam qualquer tipo de droga, por mais “leve” que seja. O vício é um caminho sem volta, e eu não sei mais por onde andar.



Por: Ana Victória Boa Sorte

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