Eu já não suportava viver lá. Parecia que o tempo não passava. O relógio não se importava em mover os seus ponteiros. As horas eram cada vez mais longas. Os minutos aparentavam durar dias. E eu contava os milésimos de segundos para que o meu plano entrasse em ação. A Terra se tornou um verdadeiro caos. A começar por mim. Pessoas insatisfeitas, mal humoradas, que fazem o problema parecer cada vez maior. E sem solução. O trânsito de todo dia, as reclamações de um chefe incompetente que eu definitivamente substituiria com excelência. E na volta do trabalho, crianças vendendo balas para depois se drogar, beber, fumar.
A televisão, o banal horário político que chega a ser ridículo. Aquelas propagandas, cheias de cores e músicas alegres, irritantemente contagiantes, que a gente canta todo o dia quando estamos distraídos, e que definitivamente não tem nada a ver com a realidade. Eu não me atrevo a viajar de carro, por que as estradas estão horrorosas, tão esburacadas que em alguns momentos, tenho medo de me afundar em alguns dos buracos, ou melhor, crateras. E avião está fora de cogitação. Ouço todas as noites a Fátima Bernardes comentar sobre o caos aéreo. Nem passo perto de um aeroporto, por que anda tão cheio de marginais, que corro o risco de ser assaltada na porta.
E então, chego em casa, a geladeira vazia, por que encarar um supermercado está cada dia mais difícil, além dos preços inflacionários e absurdos, a fila é imensa. Acho que deveriam existir uns banquinhos próximos ao caixa, pra que as pessoas possam se sentar. Meu marido diz que reclamo de boca cheia, por que pelo menos não tenho que pegar ônibus às cinco da manhã. Aqueles lotados, que as pessoas ficam amontoadas como sardinhas. É, eu tenho meu carro, mas e quem não tem? Quem vive num ponto de transporte público, cuja passagem está cada dia mais cara? E isso por que ainda não falei das drogas. Até naquelas vilas do interior já existem um monte de prisioneiros do crack. É assim que os chamo, por que um drogado é escravo do seu vício.
E então, resolvi me tornar um Manoel Bandeira. Vou-me embora, mas não para Pasárgada. Por que lá tem rei, e eu sou contra a monarquia. Vou para Fénix. Uma cidadezinha que fica em cima de um cometa, mas por incrível que pareça, lá não é tão quente assim. O clima é ideal. Tem uma brisa leve, que toca meu rosto quando fico na varanda. É... Lá as pessoas podem se deitar numa rede sem correr o risco de levar bala perdida. E como não tem efeito estufa, não fico resfriada pelo menos uma vez por semana por conta da mudança brusca de temperatura. Não tem trânsito, até por que não existem carros, nem ônibus, muito menos aqueles motoqueiros atrevidos. Tudo é perto, por isso eu ando a pé, e economizo com a academia. Não existem chefes, por que as pessoas são civilizadas e não precisam de ordens, sabem o que e como devem fazer.
As crianças brincam descalças na rua. Eu fico maravilhada toda vez que as vejo se sujar de terra. É tudo tão normal. Não existem mães histéricas e com manias malucas de limpeza. Não existem senadores, governadores. Cada um cuida do que é seu, e está sempre disposto a ajudar o próximo. Os supermercados continuam lotados, mas os preços são menores e é até bom ficar na fila, por que em Fênix existem os banquinhos que eu tanto sonhava. E tem música também. De qualidade, logicamente. Eu fico parada, pensando. Lembrando. Sorrindo à toa. As pessoas não viajam por que encontram tudo aqui. Estão sempre de bom humor, e o vizinho não põe veneno no seu quintal. Pelo contrário, ele até molha sua grama quando, por um descuido raro, você esquece de fazê-lo. Eu sinto uma vontade imensa de abraçar os meus amigos, por que agora sei que eles são verdadeiros e não fazem aquela cara de perversidade que eu vejo na novela, até por que aqui não existe televisão, as pessoas vão ao parque às seis horas, ao invés de ficarem no sofá.
Adoro sair à noite, vou para a balada. É... Eu sou uma cinquentona, e mesmo assim, danço todas. Até eletrônica. E os jovens não riem de mim. Têm bebidas, mas não são alcoólicas, ou seja, nada de ressaca no domingo. Domingo é dia de praia, futebol, maracanã. Não existe rivalidade e os torcedores não levam peixeiras para o estádio. Não existe revólver, e nem policial autoritário que acha que pode humilhar as pessoas. Até por que não existem ladrões, existem seres humanos. Que erram e reconhecem. Se arrependem e agem diferente. Mas o que faz de Fênix um lugar melhor não são as coisas que existem lá, são as pessoas. Elas honram o título que recebem. Humanidade. Uma palavra tão bonita. Mas tão rara na prática.
Porém, apesar do desejo que tenho do meu sonho se tornar real, está na hora de acordar, esfregar os olhos e levantar. Mais um dia se inicia. Fênix fica para trás. Mas por que não continuar sonhando, no entanto acordada? Por que não agir como ajo na minha cidade-cometa? Hoje será diferente. Eu vou suportar o trânsito ouvindo música, vou sorrir para o chefe mesmo que ele faça aquela cara de desgosto de sempre, e abraçar os meus amigos, por mais que não sejam verdadeiros. Hoje eu vou agir diferente, quem sabe assim todos não façam como eu? Uma andorinha só não faz verão, mas faz a sua parte para que as outras também queiram o sol. Um dia, mesmo que demore, o planeta Terra será o cometa Fênix.
Por: Ana Victória Boa Sorte
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