“Não careço dizer-lhe que o amor foi meu. Não é necessário que eu explique ao senhor o porquê de estar aqui, frente a mim nesse momento. Sua presença já o revelou. Para que uma mulher sacrifique assim todo seu futuro como eu fiz, é necessário que a existência tenha se tornado para ela um deserto, onde não resta senão um cadáver de um homem que o assolou para sempre. O senhor não compreendeu nem retribuiu o meu amor. Supôs apenas que eu lhe dava preferência entre outros namorados, ou o escolhia para herói dos meus romances. Conheci que não me amava como eu queria e merecia ser amada. Mas ainda assim, iludia-me com um amor que eu julgava suficiente. Mais tarde, o senhor dirigiu esse mesmo afeto com que me consolava e transportou-o à outra, mas ainda assim, tive forças para amar-lhe e perdoar-lhe. Mas o senhor não me trocou pelo amor de Adelaide, e sim por seu dote, um mesquinho dote de trinta contos de réis. Eis o que não poderias ter feito, desprezasse-me, embora não destituísse do pedestal em que lhe coloquei em minha alma. Eu tinha um ídolo, o senhor abateu-o do topo e lançou-o ao pó. Eis o seu crime. A sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio. A riqueza que Deus me deu veio tarde. Já conhecia o mundo e suas mazelas, sabia que a moça rica era só mais um arranjo, e não uma esposa. Que me serviria todos os meus bens? Mostrar à esse homem que mulher o amava, e que alma perdeu. Mas ainda afagava uma esperança. Se o senhor recusasse nobremente minha proposta aviltante, iria lançar-me aos seus pés, pedir que dissipasse minha riqueza se desejasse, mas novamente minha última lamentação foi destruída por suas duras escolhas e cruéis palavras. Que me restava então, se o senhor matou-me o coração? Mas acalme-se que o suplício pode não ser longo. Dos 100 contos de réis que o senhor avaliou-se, já recebeu 20, aqui estão os oitenta que faltavam. Agora posso chamar-lhe de meu, meu marido, pois é este o nome de convenção. Vamos, continuemos a nossa comédia para alegrar-nos, venha e dê-me o seu primeiro beijo de amor! Não é verdade que o senhor sempre me amou e nunca preferiu nenhuma outra mulher senão a mim?” (Aurélia – Adaptação).
Senhora, José de Alencar – Cap. 2 (Quitação).
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